O racismo intrínseco às estruturas sociais, os privilégios das pessoas brancas e a necessária mobilização para reduzir as desigualdades raciais foram debatidos no webinário “A branquitude e o papel da Magistratura na construção antirracista da sociedade”, promovido pela Anamatra, na segunda-feira (22), em homenagem ao Dia da Consciência Negra.
A diretora de Cidadania e Direitos Humanos da AMATRA1 Bárbara Ferrito e a juíza do TRT-4 (RS) Gabriela Lacerda, integrantes da Comissão Anamatra Mulheres, foram as palestrantes do encontro, que também teve as juízas Manuela Hermes e Viviane Martins, do TRT-5 (BA), como debatedoras. A vice-presidente da Anamatra, Luciana Conforti, fez a mediação. O evento também foi marcado pela divulgação do projeto Enegrecendo a Toga, que pretende estimular o ingresso de negras e negros de baixa renda nos concursos da Magistratura trabalhista.
Em sua apresentação, Bárbara Ferrito reforçou a importância de falar sobre raça e racismo, e de a sociedade entender que não há diferença biológica entre as raças mas, socialmente, a raça tem um forte significado. “Ser um corpo negro ou branco tem uma colocação na hierarquia social que importa na concretização da sua humanidade”, pontuou.

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A diretora da AMATRA1 também tratou do conceito de racismo estrutural, presente na forma com que a sociedade se organiza e funciona, e sobre a presença das instituições de poder no combate ao racismo. Para Bárbara, é impossível, tendo-se como premissa a Constituição Federal de 1988, pensar em outra possibilidade que não seja a de um Judiciário antirracista.
“O Judiciário precisa se engajar ativamente na luta contra o racismo, o patriarcado e outras formas de opressão. Acreditar que existiria outro caminho é entender que essas desigualdades são inatas ou insuperáveis, o que, além de mentiroso, é extremamente cruel com as pessoas afetadas. Não há democracia constituída sobre relações marcadas pelo racismo e pelo patriarcado. O racismo leva à exclusão das pessoas e do acesso ao Direito e às arenas de discussão e poder, fazendo com que não tenham voz. Não ser ouvido e não poder falar inviabiliza a democracia”, disse Bárbara Ferrito.
A vice-presidente da Anamatra, Luciana Conforti, afirmou ser fundamental refletir sobre o perfil da Magistratura no Brasil. Luciana citou um relatório publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2018, que descreveu o perfil do juiz brasileiro como um homem branco, casado, católico e pai. A juíza apresentou, ainda, dados sobre a participação feminina no Judiciário e, especificamente, na Justiça do Trabalho: apesar de as mulheres representarem 50,5% do quadro, 81% das magistradas se autodeclaram brancas.

“Assim, é necessário o reposicionamento do papel da Magistratura para a construção antirracista da sociedade, afastando mitos que permeiam o imaginário social e que norteiam muitas práticas, como a inexistência do racismo no Brasil, e colocando no centro do debate a inexistência do racismo reverso.”
Branquitude e atuação de pessoas brancas
A partir da análise de teóricos, como o sociólogo norte-americano Du Bois, precursor dos estudos sobre as pessoas brancas no racismo, e a psicóloga e ativista brasileira Cida Bento, a juíza do TRT-4 (RS) Gabriela Lacerda abordou o conceito de branquitude, que descreveu como “poder de nominar o outro”. “As pessoas brancas, por ocuparem espaços de poder institucional, têm o poder de nominar”, completou.
Gabriela destacou como principal característica do “pacto narcísico da branquitude”, termo cunhado por Cida Bento, o silêncio em torno das discussões raciais. “Por isso, esse debate é importante. Falar sobre esse tema e trazer as pessoas brancas para a discussão é essencial para desconstruirmos a estrutura social, porque os estudos críticos da branquitude propõem que a gente se racialize enquanto sujeitos brancos e perceba que o racismo é um processo relacional, que não é algo que apenas acontece com pessoas negras, pois do outro lado há pessoas brancas.”

Na Magistratura, o pacto narcísico também se manifesta pelo silêncio, afirmou a juíza, já que, por décadas, o aspecto da raça foi ignorado nas pesquisas internas. “Só a partir de 2013, quando o ministro Joaquim Barbosa estava à frente do CNJ, as pesquisas passaram a perguntar qual era o pertencimento racial dos magistrados. Assim, vimos a imensa disparidade, que é algo constrangedor. Todos nós deveríamos acordar todos os dias e pensar – hoje temos um problema: a Magistratura segue sendo branca e a maioria da população é negra -”, afirmou.
A vice-presidente da Amatra5 (BA), Manuela Hermes, convidou as pessoas brancas a fazerem uma reflexão crítica sobre o racismo para integrar o movimento antirracista. A magistrada pontuou ser preciso a participação de todos, pois “essa luta não se faz só com pessoas negras”. “Conclamo que as pessoas brancas pratiquem esse exercício, que pensem a partir do privilégio e comecem a adotar uma conduta efetiva em suas interações sociais. Incomode-se com o racismo. É a partir do incômodo e de ações concretas que vamos de fato construir a sociedade mais igualitária que desejamos”, disse.

Para Viviane Martins, integrante da Comissão de Direitos Humanos da Anamatra, a geração atual é responsável pelas possibilidades de mudanças futuras. “Peço que a gente mantenha essa reflexão, reencontre nossa história e nossa identidade, produza novos sentidos e novos significados para os lugares das pessoas brancas e negras, com menos culpa e vergonha e mais reconhecimento, redistribuição, nomeação dos racismos, ações e reparações. É disso que vai ser feita a construção da sociedade antirracista”, concluiu.

Projeto ‘Enegrecendo a Toga’
O webinário também divulgou o projeto “Enegrecendo a Toga”, idealizado por Bárbara Ferrito e outros três juízes, e promovido pela Anamatra. Serão ministradas aulas gratuitas a mulheres, preferencialmente, e também a homens que sonham em ser juízas e juízes do Trabalho.
“Reconhecemos que temos que avançar em um projeto para uma Magistratura menos branca. Trata-se de uma medida alternativa para a inclusão de mais afro-brasileiras e afro-brasileiros na Magistratura nacional”, afirmou Luciana Conforti.
Bárbara Ferrito contou que a ideia da iniciativa surgiu a partir da constatação do grupo sobre a passividade diante dos números de desigualdade racial e da insuficiência das cotas para o concurso. “Percebemos que precisaríamos do apoio institucional da Anamatra e temos conseguido um ótimo acolhimento. O projeto tem um caráter prático: vamos fazer algo, colocar a mão na massa e comprar a briga de construir o Judiciário inclusivo que queremos. Ele vai dar a possibilidade não só para a gente, mas para todos que tiverem interesse em contribuir efetivamente para uma Magistratura inclusiva e antirracista”, explicou.
Veja o webinário na íntegra: