A história de vida da escritora e jornalista Sylvia Serafim Thibau é o tema do artigo “‘Petite Source’ ou ‘Cinderela’ num Mundo Masculino”, escrito pela juíza Glaucia Alves Gomes na coluna “Mulheres, por elas mesmas” desta terça-feira (22). O desejo de liberdade e de romper com o comportamento esperado para as mulheres da década de 1920 – que se refletia na vida pessoal e profissional de Sylvia, e se desdobrou em acontecimentos dramáticos –, foi destacado no texto da magistrada. A coluna é uma iniciativa da Diretoria de Direitos Humanos da AMATRA1, pelo mês do Dia Internacional da Mulher.
‘Petite Source’ ou ‘Cinderela’ num Mundo Masculino
Por Glaucia Alves Gomes
A normalidade é considerada “a maior excelência de que somos capazes”. […] O que descrevem como autodestruição invisível no homem é, creio, igualmente destrutivo na mulher que se adapta à mística feminina e espera viver por intermédio do marido e dos filhos; que só deseja ser amada, sentir-se segura, ser aceita pelos outros e nunca tomar um compromisso com a sociedade ou com o futuro, nunca realizam seu potencial humano. As ajustadas, ou curadas, que vivem sem conflitos ou ansiedade num mundo limitado do lar, renunciaram à própria personalidade; as outras, as infelizes, frustradas, ainda têm alguma esperança. (FRIEDAN Betty, A Mística Feminina, Rio de Janeiro: Editora Vozes Ltda., 1971.)
A história que vou contar hoje não é minha, não é da minha família, não é de alguém com quem convivi, mas passou a fazer parte do meu universo há cerca 14 anos, quando comecei a ouvir a narrativa do seu neto.
É uma história longa, apesar de sua curta vida, cheia de reviravoltas, ambientada nos anos 20 e, como disseram uns amigos, daria umas três temporadas na Netflix.
Conto a história ou, pelo menos, narro parte dos fragmentos que pude reunir, de Sylvia Serafim Thibau, escritora e jornalista brasileira, com talento e textos importantes na época, mas que acaba ganhando notoriedade depois de uma acusação de adultério seguida de um crime.
Sylvia foi uma mulher autônoma e independente, deixou cedo o jugo do pai, com um posicionamento intelectual e libertário, vivendo em um Brasil conservador em que as mulheres em geral não trabalhavam, não podiam ocupar cargos públicos nem tinham acesso à educação superior. Ela queria romper o padrão, expressar suas ideias em vez de seguir a manada e conformar-se com o que o destino guardava para as mulheres.
Sylvia publicou textos jornalísticos, crônicas, poemas, na maioria voltadas para o público feminino. Colaborava para os grupos importantes da comunicação brasileira da época: Assis Chateaubriand e Casper Libero.
Subscrevia seus textos com os pseudônimos de “Petite Source”, em textos sobre comportamento feminino, sobre a condição feminina e sobre a intelectualidade da mulher de seu tempo, ou “Cinderela” para os escritos mais banais e cotidianos de moda, maternidade e casamento.
Sylvia fazia parte e frequentava a alta sociedade, que via e narrava com olhar crítico e culto, publicando em uma época em que às mulheres não era “de bom tom” falar sobre diversos assuntos.
Sylvia apresentou alguns poemas que sempre abordaram o sentimento com uma forte carga autobiográfica, escritos jornalísticos onde expressou toda a sua ideologia e foi congratulada com um famoso prêmio literário, noticiado pelo jornal A Noite, ano 1929\Edição de Agosto (1).
Ousou escrever uma crônica que intitulou “Uma ruptura”, também em 1929, em que Gilda, uma esposa insatisfeita e entediada, decide romper o casamento naufragado em nome do amor por outro homem mais jovem.
A coragem da escrita dos temas, que reúnem quase todos os tabus da época, deixa mais que evidente o desejo de Sylvia de liberdade, de rompimento com o que era imposto e “esperado” das mulheres que teriam que optar entre o casamento infeliz ou a marginalização e estigmatização da sociedade pelo rompimento.
No mesmo ano (1929), publica também a crônica “Achas que Devo Hesitar?”, em que narra um diálogo entre duas amigas, Lélia e Gilda, onde a primeira vê-se num dilema entre o amor que considera verdadeiro, mas de um homem pobre, e aquele que a sociedade aponta como o marido ideal que poderia lhe trazer “segurança”.
Gilda é a conselheira da amiga e tem uma visão bastante crítica sobre a amiga “vender” sua felicidade, no trecho em destaque:
“– Já vens tu com paradoxos… – Não, minha amiga, falo seriamente. Considero o verdadeiro, o primitivo sentido da ideia de venda. (A venda) É a troca daquilo que temos em excesso, pelo que necessitamos. – Pois seja tudo troca ou venda, segundo dizes. Não faço questão de palavras; não estou em aula de retórica, porém, angustia-me o teu destino, que prevejo infeliz. Seja todo ato humano uma venda, tu, que eu sei sincera e apaixonada, não deverias antes trocar o teu futuro pela felicidade do amor, do que pelo dinheiro? – O amor … o dinheiro, francamente, Gilda, nunca te julguei assim ingênua e inexperiente. Como lanças esses dois termos, também já irreconhecíveis pelo gastar do uso e do abuso? Mas, enfim, já chegaste ao meu ponto de vista, e isso, é alguma coisa. Disseste bem, minha amiga, trata-se de trocar o meu futuro, esta liberdade a quem já me habituei, por alguma coisa que julgo dever completar minha vida. (…) (THIBAU, 1929)
Como dito, os textos de Sylvia têm uma forte carga autobiográfica e refletiam o que passava na própria vida pessoal e, como veremos a seguir, acaba tendo a vida marcada pelos eventos e tragédias mais que pela escrita.
Sylvia, além de manter sua carreira, à época era casada com o conhecido médico Ernesto Thibau Júnior, com quem tinha filhos.
Ousada para a época, Sylvia decide desquitar-se e começa o seu calvário. O processo faz com que perca, temporariamente, a guarda dos filhos comuns do casal.
No meio deste turbilhão, o jornal A Crítica, de Mário Rodrigues, pai do escritor, jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues, publica um artigo expondo não só o processo de desquite, mas sugerindo adultério com nome e sobrenome de todos os envolvidos.
As manchetes da edição do jornal de 26/12/1929 dizem “Entra hoje em Juízo nesta capital um rumoroso pedido de desquite”, “Há uma grande ansiedade pública em conhecer os motivos da separação do casal Doutor Thibau Júnior”, “Será o conhecido Radiologista Dr. João de Abreu o causador directo da dissolução do lar daquele seu ilustre colega?”, e segue, “Madame Sylvia Thibau, que subscreve suas crônicas em jornais e revistas com pseudônimo de Petite Source, esteve em nossa redação”.
A matéria de capa é acompanhada de uma gravura igualmente machista, misógina, vulgar, em que uma mulher está sentada em uma cama médica com vestido no meio das coxas, pernas entreabertas e um médico apalpando-a na altura do joelho.
A acusação de que estaria tendo um caso com o médico Manuel de Abreu Júnior, o inventor da abreugrafia, é devastadora. Sylvia perde totalmente o rumo, pois ser mulher, profissional e desquitada já era muita ousadia e estigma, mas acusada de adúltera e separada dos filhos, acaba por tentar suicídio.
Não consegue. Frustrada a tentativa de suicídio, decide acabar com quem vê como responsável pela situação em que se encontra – Mário Rodrigues, editor-chefe do jornal.
Sylvia vai até a redação e não encontra Mário. É recebida pelo seu filho, Roberto Rodrigues, com quem trava uma discussão, é afrontada e humilhada mais uma vez, saca um pequeno revólver da bolsa e dá um tiro em Roberto, matando-o diante do irmão mais novo, Nelson Rodrigues, no dia 26 de dezembro de 1929.
Sylvia é imediatamente internada em uma casa de repouso particular, diante da saúde frágil e debilitada, e soergue com força, a partir do evento, uma verdadeira guerra editorial jornalística que usa o drama pessoal de Sylvia: de um lado, o grupo comandado por Mário Rodrigues, e, de outro, o comandado por Assis Chateaubriand, que apoia Sylvia.
Chateaubriand defende a escritora e jornalista Sylvia Serafim, publica matérias enaltecendo sua carreira, sua condição de mãe, mulher, batalhadora, as humilhações que o jornal A Crítica a tinha feito passar.
Por parte dos Rodrigues, Sylvia é acusada em manchetes de meretriz, criminosa, sanguinária, traiçoeira, emboscadeira.
Sylvia perde definitivamente a guarda dos filhos, mas continua a escrever nos jornais onde trabalhava. Conta, naquele momento, com uma certa simpatia da opinião pública e o crescimento do movimento sufragista feminino no Brasil.
É levada a julgamento no ano seguinte ao homicídio. A imagem de criminosa fria não prevalece, mas sim de uma mulher que agiu sob forte emoção, depois de ver a vida devastada pela publicação de A Crítica, e é absolvida no júri por 5×2 pelo fundamento de crime passional.
Uma curiosidade aqui é que Sylvia é absolvida pela mesma excludente aplicada a vários homens que cometeram feminicídio na época, “a legítima defesa da honra”, ou seja, por motivo de privação temporária da razão que a levou a cometer ato de tal natureza.
Apesar da absolvição, Sylvia não consegue se manter no meio jornalístico e literário como antes. Sua produção intelectual é abandonada e cai no ostracismo.
Neste momento, apaixona-se por um militar da Força Aérea, Armando Serra de Menezes, e tem um filho. Armando não fica com Sylvia. Parte para Curitiba e casa com uma representante da alta sociedade local.
Sylvia fica no Rio de Janeiro, sem trabalho, com o filho pequeno, e tenta, sem sucesso, aproximação com Armando.
Publica alguns textos no ano seguinte, 1930, já com tom diferente de escrita, tal como em “Esoterismo”, no qual discute “se o cálculo da felicidade pelas letras do nome, não está para o destino de cada um, como os algarismos do termômetro estão para a temperatura do corpo.” (…) e aconselha “o esoterismo como agradável passatempo de sala. É fino, intelectual e guarda um ligeiro sabor de mistério, é suficiente para fazer correr à flor da pele, frêmito leve de ansiedade”. E analisa o próprio nome Sylvia que teria por signo o número 7. “O signo do número 7 sofre influência fatídica, pois o número 7 é o número fatal, que persegue os grandes poetas da dor. A solidão e a tristeza acompanham-nos. A pobreza que desanima, a doença que enfraquece, as paixões mal compreendidas, estão sob essa fatal influência”.
Em 16/02/1930, publica em O Jornal o artigo “Jardim Interior”. “Querem minhas gentis leitoras, também passear, nos maravilhosos jardins das almas, levadas pelas mãos firmes destes salteadores místicos? Venham espreitar hoje o ‘Repuxo Oriental’, trecho do livro ‘A Casa e o Mundo’, de Rabindranath Tagore. […] É preciso que a mulher saia de seu lar e se adiante até o coração do mundo externo, para ali encontrar a realidade. […] As mulheres são como os rios: forças úteis, enquanto correm entre suas margens e poder destruidor, se delas transbordam. Quando a paixão desperta na mulher, ela se torna indiferente a tudo quanto não é sua paixão. As mulheres são filhas da realidade e não passeiam, como os homens, entre as nuvens, em balões de ideias. Os homens sabem apenas pensar, as mulheres sabem compreender, sem pensar.” E, tal como em “Fios de Prata: A Sinfonia da Dor”, seu primeiro livro, publicado em julho de 1930, Sylvia expressa todos os seus sentimentos mais interiores e angustiados.
Segue publicando poemas, artigos, pequenos escritos, tais como “O Grande Desconhecido”, “Cansada”, A Marcha da Dor”, “Manual de Civilidade, Damas e Valetes e Ramos do Coro”, “Três Preceitos e Três Receitas” (em que ela aconselhava sarcasticamente algumas pequenas pílulas de sabedoria, contendo regras de etiqueta e códigos de polidez, misturadas com algumas receitas culinárias deliberadamente pretensiosas).
Não desiste de se unir a Armando. Muda-se para Curitiba com o filho pequeno. Para sobreviver, acaba por comprar um diploma universitário falso do curso de Direito e é descoberta.
Levada a julgamento, não é mais ré primária, não estava em legítima defesa da honra, tinha envolvimento com Armando, casado com uma representante da alta burguesia local com contatos em todas as esferas, é julgada, condenada e presa.
Sylvia suicida-se, aos 33 anos, em 1936. Pela versão oficial, envenenou-se com uma dose letal de soníferos, que não se sabe como teve acesso, num hospital judiciário, na cela em que estava presa com o filho mais novo do relacionamento com Armando.
Assim, acaba uma curta, mas intensa história, da mulher que escolhi para falar neste mês e que, tenho certeza, seu feito não foi pegar em um arma de fogo, tal como Maria Quitéria trazida pela Najla (2), mas sim na arma da escrita.
Teve coragem de se libertar e tentar libertar outras mulheres pela reflexão. Questionou, ousou e, certamente, fez parte da construção deste longo caminho que continuamos a percorrer em busca da liberdade, do autoconhecimento, da igualdade e do fim da opressão. Espero que tenha feito jus à sua memória ou, pelo menos, um pouco da trajetória da Sylvia.
Quem sabe nossa história continua na próxima temporada! (3)
Referências:
(1) Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=348970_02&hf=memoria.bn.br&pagfis=26280
(2) Artigo Heroína do Sertão, por Najla Abbude, disponível em https://www.amatra1.org.br/noticias/?heroina-do-sertao-conheca-a-luta-de-maria-quiteria-contra-os-padroes-impostos
(3) Aqui deixo o registro do seu bisneto Sergio Schargel Maia de Menezes, doutorando em Ciência Política pela UFF. Mestre em Letras pela PUC-Rio. Sua pesquisa é focada na relação entre literatura e política, tangenciando temas como teoria política, literatura política, antissemitismo e a obra de Sylvia Serafim Thibau. Vencedor do Prêmio ABRALIC de melhor dissertação no biênio 2019-2021 forneceu-me material para leitura, além das memórias narradas pelo neto Cláudio. Sylvia e sua obra também são objeto de pesquisa UNIVERSITÉ SORBONNE NOUVELLE – PARIS 3, sob o título “Pourquoi n’ai-je jamais entendu parler d’elles? Sylvia Serafim Thibau et l’effacement discursif des femmes controversées”.
Veja outros textos da 2ª edição da coluna “Mulheres, por elas mesmas”:
‘Maria Alice deixou as mais valiosas lições de vida para sua família’
‘Heroína do Sertão’: a luta de Maria Quitéria contra os padrões impostos
‘Estamos aqui: filhas, companheiras, mães, amigas, magistradas e mulheres’