A persistente cultura escravocrata que permeia, inconscientemente, as relações formais de trabalho no Brasil – último país da América Latina a oficializar, em 13 de maio de 1888, o fim do sistema de exploração, depois de quase quatro séculos – foi o foco da live “Dia do Trabalhador, Significado do Emprego e a Perda dele nos Dias Atuais”, promovida pela AMATRA1 na sexta-feira (13). A juíza Daniela Muller, diretora da associação, debateu com a pós-doutora em Ciências Políticas Valdete Severo, levantando a relevância da data, assim como seus pontos críticos, e as consequências dessa negativa herança para os trabalhadores. A conversa foi transmitida pelo canal da AMATRA1 no YouTube e no Facebook.
Daniela introduziu o tema lembrando que o ensino mais clássico menciona que, apenas a partir da assinatura da Lei Áurea, foram iniciadas as condições sociais, legais e históricas do que é visto hoje como Direito do Trabalho. No entanto, pontuou a juíza, existia uma sociedade de Direito com separação de poderes, inclusive com a atuação de um Judiciário que apreciou processos relativos à escravidão, como a chamada “ação de liberdade”.

“Podemos pensar em uma proximidade com nossa ação indireta, só que talvez uma das mais importantes, porque valia a liberdade e reconhecia aquela pessoa enquanto ser humano e cidadão que, a partir dali, teria alguns direitos”, explicou.
Rejeitando a concepção popularmente difundida de que algumas pessoas detentoras de poder se imbuíram de ideias liberais e entenderam que o sistema escravagista não era o melhor, a magistrada vê a conquista da abolição como fruto da luta de pessoas escravizadas e, também, de integrantes da classe trabalhadora do período.
“Isso gerou uma grande massa de libertos e livres que trabalhavam, no século 19, por demanda, de uma forma incomodamente parecida com o que vemos hoje com os trabalhadores de aplicativos: sem vínculos ou qualquer tipo de proteção”, disse, ressaltando que o conceito do 13 de maio só fica completo quando unido ao do Dia da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro.
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Valdete Severo concorda que a Lei Áurea, simbolicamente, foi muito importante, “mas deixou muito a desejar”. A falta de um “acerto de contas” fez persistir, segundo a especialista, “uma subjetividade que nos faz pensar que ainda somos senhores de escravos”. Com isso, a lógica em que “o outro é visto como alguém que deve me servir” é presente em muitos vínculos sociais, mas especialmente nas relações de trabalho.
Ela indicou que, como o trabalho é obrigatório e não uma escolha, quem não trabalha, como regra, não sobrevive, e isso faz com que o cidadão perca sua condição de subsistência mais elementar. Assim, o trabalho passa a ser visto sob a perspectiva da gratidão, “como se ter um trabalho fosse algo que dependesse da boa vontade de quem está empregando”.
“Atua no inconsciente a presença da cultura escravocrata que faz com que a gente olhe para uma relação de trabalho e entenda que quem está trabalhando deve ser grato por ter um trabalho, e que, como está à disposição de quem o emprega, quem emprega pode descartá-lo à hora que quiser”, acrescentou.
Autora do livro “A Perda do Emprego no Brasil: Notas para uma Teoria Crítica e para uma Prática Transformadora”, Valdete falou também sobre a ideia da inconstitucionalidade da justa causa, afirmando ser praticada sem observar a ampla defesa e o contraditório. Para a pesquisadora, não deveria ser permitido que um Estado fundado na dignidade humana e no valor social do trabalho tenha a possibilidade de “tirar o emprego de alguém sem pagar nada, que é o que costuma acontecer, sob a alegação de uma acusação que torna inviável o vínculo, e sem que essa pessoa tenha o direito de defesa”.

“Sei que isso é polêmico, sempre surge o argumento da possibilidade de a pessoa ter furtado, agredido o empregador, se negado a trabalhar… Pode-se imaginar as situações mais revoltantes. O meu ponto é que, então, não se continue o vínculo, pois é uma hipótese de despedida motivada, mas que se pague aos trabalhadores direitos que não tem a ver com sua boa ou má conduta e que são condições de possibilidade de sobrevivência”, completou.
Valdete considera como “boicote à ordem constitucional” a justa causa sem pagamento de direitos ou com redução dos valores de direito do trabalhador – fato que altera não só a esfera trabalhista, mas também econômica. “Toda vez que aceitamos que alguém demita sem pagar nada e sem dar acesso ao fundo de garantia do próprio trabalhador e ao sistema do seguro desemprego, estamos prejudicando todo o tecido social pois colocamos essa pessoa e essa família em situação de indigência, já que a maioria das pessoas ganha para comer.”
Veja a live na íntegra: