31 de março de 2022 . 14:44

Ideias universais invisibilizam a desigualdade, diz juíza Patrícia Maeda

Como julgar enxergando através de lentes de gênero e percebendo as diferentes desigualdades por trás dos processos? Esse questionamento é amplamente respondido no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, que foi tema da live da AMATRA1 desta quarta-feira (30). As juízas Daniela Muller e Bárbara Ferrito, diretoras da associação, e a juíza Patrícia Maeda, do TRT-15 (Campinas/SP), comentaram a importância de conhecer e praticar as diretrizes do documento lançado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para guiar a atuação jurisdicional de juízas e juízes. O encontro foi mediado pela 2ª vice-presidente da AMATRA1, Mônica Cardoso, e está disponível no YouTube e no Facebook.

Mônica Cardoso afirmou que a medida do CNJ busca dar uma resposta à sociedade, sobre questões que foram agravadas nos últimos anos, por meio de diretrizes para que a atividade jurisdicional assegure o princípio da igualdade e rompa com estereótipos culturais.

“Esse tema é de grande relevância e o objetivo não é só divulgar o protocolo, mas também incentivar e ajudar a reflexão sobre esse documento tão importante, que reconhece as desigualdades estruturais e as assimetrias de poder na nossa sociedade, inclusive as situações de interseccionalidade que impactam nas relações de gênero em casos levados ao Judiciário e submetidos à nossa apreciação”, disse. 

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Colaboradora do grupo de trabalho que desenvolveu o protocolo, Patrícia Maeda pontuou que ideias consideradas universais nem sempre alcançam os grupos minorizados, ou seja, que podem não ser menores em termos quantitativos, mas têm menor poder político. “Fazem parte dos grupos minorizados as mulheres, as pessoas não brancas, as crianças, os idosos, as pessoas com alguma deficiência. Há a necessidade de chegarmos nessa especificidade porque, muitas vezes, a ideia universal acaba invisibilizando alguma espécie de desigualdade e opressão.”

A partir dessa concepção, surgiu o projeto do protocolo sobre gênero. Segundo a juíza, o documento é fruto de discussões e da busca por igualdade concretizada no cotidiano. A magistrada explicou que o documento não cria novos direitos, mas trata de conceitos sobre temas como gênero, sexualidade, orientação sexual e divisão sexual do trabalho, para se entender as nuances de marcadores sociais e de desigualdade por trás dos processos.

“O protocolo tentou trazer visões de todos os ramos da Justiça. A composição também observou a questão regional, saindo do eixo Sudeste e Distrito Federal para trazer magistrados de todo o Brasil. A ideia era tirar esses conceitos do campo teórico e mostrar como poderíamos implementar as lentes interseccionais de gênero na prática”, afirmou.

Prática do protocolo na Justiça do Trabalho

Para Daniela Muller, o protocolo é uma oportunidade de os agentes da Justiça do Trabalho se reconectarem com a razão de ser dessa área do Judiciário. “O modo de operar e trabalhar processualmente o Direito e como ele vinha sendo praticado até a criação da Justiça do Trabalho mostraram que não era efetivo. Precisava de um outro processo, que compreendesse a desigualdade e a necessidade de aplicar as normas de proteção. E o protocolo é uma grande chance de reencontrarmos essa nossa ‘alma’.”

A proposta de ajudar a interpretação subjetiva a partir das lentes de gênero e auxiliar os procedimentos práticos, como a condução da colheita de provas, foram alguns pontos positivos destacados por Daniela. Ela mencionou, como exemplo, a opção de não ouvir uma testemunha que é um assediador se considerar que a situação vai constranger outra pessoa.

“Existe uma parte específica sobre prova técnica que fala sobre a possibilidade de julgar contra uma prova técnica. O protocolo traz a ferramenta que muitas vezes não percebemos, sobre aquela prova ser colhida com visões contaminadas. Uma situação possível é a mulher ter muitos filhos ou não ter filhos, que é um ponto de peso para a sociedade”, acrescentou. 

Segundo Bárbara Ferrito, o documento indica que a visão de mundo, modo de viver e realidade não são as mesmas dos jurisdicionados, sendo necessário contextualizar o processo e entender que o lugar em que se está não é universal. A juíza contou uma situação em que foi preciso seguir as diretrizes do protocolo. O caso envolvia uma trabalhadora da área da saúde que pedia rescisão indireta após voltar de licença-maternidade e ter tido seus horários de plantão alterados.

“É interessante perceber como a pobreza de tempo das mulheres, com jornada de cuidado e dupla jornada, afeta a possibilidade de ter soberania em seu próprio tempo. Se não entendermos o trabalho de cuidado como trabalho e que recaem sobre as mulheres obrigações sociais que a impedem de mudar seu horário de trabalho, não vamos entender porque essa mulher viu a ordem do empregador como uma falta grave”, explicou a autora do livro do livro “Direito e Desigualdade - Uma Análise da Discriminação das Mulheres no Mercado de Trabalho a Partir dos Usos dos Tempos”.

A discriminação motivada pelo código de vestimenta foi outro ponto levantado por Bárbara. A juíza relatou casos em que pessoas negras, especialmente mulheres, são orientadas a alisar, prender ou usar o cabelo de determinada forma, sem a liberdade de ser como é. 

“Se não entendermos que o cabelo é uma manifestação da personalidade, que há carga política e cultural por trás da escolha de usar trança, dread, black ou cachos, e que há um contexto, como o protocolo bem indica, naquele processo, não vamos entender qual é a dificuldade daquela trabalhadora em se adequar ao modelo imposto a ela e não vamos enxergar o racismo. O protocolo nos convida a exercitar essa sensibilidade e empatia”, disse.

As magistradas também comentaram outros casos específicos em que se faz necessário o uso do protocolo criado pelo CNJ, como assédio sexual e moral e julgamento com visão estigmatizada contra a população LGBTQIA+.

Veja a live na íntegra:
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