09 de abril de 2021 . 14:56

Roberto Fragale publica artigo ‘Hibridismo na docência jurídica’, no Jota

O juiz do Trabalho Roberto da Silva Fragale Filho publicou o artigo “Hibridismo na docência jurídica”, no portal Jota, nesta sexta-feira (9). No texto, o magistrado titular da 1ª Vara do Trabalho de São João de Meriti e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) discorre sobre o dilema do duplo pertencimento às carreiras da magistratura e do magistério. Para o autor, “resta evidente que a docência perde seu potencial analítico e crítico em virtude das limitações impostas pelo pertencimento à judicatura (ou a outras carreiras). Efetivamente, quando o juiz se pronuncia, sua manifestação, ainda que cheia de subjetividade e vieses, deve verbalizar uma voz institucional”.

Hibridismo na docência jurídica
Navegando por diferentes territórios profissionais

Em tempos pré-pandêmicos quase imemoriais, quando costumava viajar, sempre que preenchia a ficha de identificação ao hospedar-me em algum hotel, o hibridismo de minha vida profissional emergia de forma arrebatadora no campo destinado à profissão. Devia identificar-me como juiz ou professor? Talvez devesse assumir a dupla carapuça e rabiscar juiz-docente ou docente-juiz. A resposta circunstancial nunca me satisfez e ainda sigo sem saber o que fazer diante dessas situações em que sou chamado a identificar-me profissionalmente, até porque esse pequeno e irrelevante dilema se repete em outras situações do cotidiano: no preenchimento de uma ficha médica, na realização de algum cadastro na internet, em bate-papo frugal com desconhecidos que desejam saber o que você faz. Nunca é fácil responder, pois toda resposta comporta uma sucessão de perguntas nem sempre desejadas. Na vida acadêmica, talvez tenha mesmo fugido desse dilema optando por fazer uma carreira docente à margem da dogmática. Enfim, guardei minhas dúvidas como algo muito pessoal, inclusive quando minha participação em discussões sobre o ensino jurídico e/ou sobre as especificidades da carreira docente universitária produzia algum (ou muito) estranhamento.

De fato, essa ambiguidade traz sérios problemas para a docência. Primeiro, ela esvazia o sentido da docência plena, pois essa última acaba açambarcada pela experiência do mundo da prática, seja ela decorrente da magistratura ou de qualquer outra carreira concorrente. Em outras palavras, a docência perde seu potencial crítico e analítico, pois seu enfoque é transferido para a reprodução do fugidio saber prático proporcionado pelo mundo judicial. Na verdade, esse é um problema reiterado das profissões imperiais, onde prevaleceu como conteúdo pedagógico a reprodução da prática.

Da mesma forma que no ensino jurídico, assim ocorre no ensino médico, onde a docência também se transforma em um critério de distinção no mundo da prática, fomentando, inclusive, um encarecimento dos serviços. Embora a docência jurídica raramente proporcione um eventual aumento do custo dos serviços jurídicos, ela funciona como um critério legitimador de discursos e práticas. De forma clara e objetiva, a docência proporciona um critério de distinção no mundo da prática; ela legitima praticamente todo e qualquer discurso.

Conquanto inusitado e algo hilário, não é difícil encontrar textos doutrinários em que algum autor utiliza uma decisão judicial por ele mesmo proferida para respaldar seu argumento teórico, formando assim um raciocínio circular: a análise teórica encontra respaldo na decisão judicial, que foi tomada em conformidade com a referida compreensão teórica. No jargão, dir-se-ia que decido assim em conformidade com a “melhor” doutrina, que assim se afirma em consonância com as “mais robustas” decisões judiciais (coincidentemente por mim proferidas). Essa frágil teorização reforça no alunado a percepção de que o mundo prático é o verdadeiro território profissional, o que lhes possibilita formular uma desconcertante pergunta em que dar aula é tudo menos trabalho:

– “Professor, você trabalha? Ou só dá aula?”

Esse hibridismo profissional é também portador de amplos problemas de implicação, uma questão metodológica que ganhou outras tintas diante das possibilidades inseridas na pesquisa-ação e/ou pesquisa-intervenção. Com elas, a neutralidade deixou de ser axiomática e a eventual proximidade do objeto de estudo não necessariamente invalida sua cientificidade, mas, no campo jurídico, implicação vira quase promiscuidade, com óbvios impactos sobre a autonomia científica de nossas investigações.

Nessa esteira, resta evidente que a docência perde seu potencial analítico e crítico em virtude das limitações impostas pelo pertencimento à judicatura (ou a outras carreiras). Efetivamente, quando o juiz se pronuncia, sua manifestação, ainda que cheia de subjetividade e vieses, deve verbalizar uma voz institucional. Em outras palavras, a deliberação do juiz não é conformada pelo seu sentir – como se decidir fosse consequência de um sentimento e não de uma escolha entre narrativas –, mas pelos referenciais normativos e institucionais que definem os limites de possibilidade de suas decisões.

Não é por outra razão que a Lei Orgânica da Magistratura e o Código de Ética vedam, em redação quase idêntica, comentários sobre processo pendente de julgamento ou juízo depreciativo sobre despachos, votos, sentenças ou acórdãos, ressalvada a crítica nos autos, doutrinária ou no exercício do magistério. Não me parece exagerado sustentar que a realização da crítica nos autos é uma circunstância necessariamente inscrita nas possibilidades de revisão das decisões judiciais, ainda que eventual comedimento seja bem-quisto para preservação da institucionalidade.

Por outro lado, as críticas doutrinária e docente ganharam contornos bem mais complicados, muito menos pela crítica em si, mas pela dificuldade em ter cada vez mais claro o alcance da doutrina e da docência, quando exercidas por magistrados.

Pois bem, como já escreveu Lenio Streck, há tempos que a doutrina deixou de doutrinar, que ela se tornou repetitiva e reprodutora, que ela ganhou contornos de conveniência ou, como diria Alexandre Morais da Rosa, que ela sucumbiu ao prêt-à-porter. Há tempos que problematizar a norma deixou de ser a essência do trabalho doutrinário, que, infelizmente, foi instrumentalizado pelo uso cotidiano dos tribunais e de seus usuários. Ainda pior é testemunhar a derrocada da doutrina diante das publicações de vaidade (vanity publishing), que ganharam contornos pandêmicos muito em função da métrica avaliativa e da governança numérica do mundo acadêmico.

Mas há ainda a instantaneidade da internet: a doutrina é agora quase sempre feita à chaud, no calor do momento, e posteriormente compilada. Nada disso é necessariamente ruim, mas é forçoso reconhecer que essa nova dinâmica esvaziou o sentido e alcance da doutrina.

É, entretanto, no âmbito da docência, que as coisas ganham traços ainda mais complicados, pois ela perdeu o sentido formativo ao ver adensar o alcance preparatório para tudo e qualquer coisa. Reconhece-se, por óbvio, o estatuto docente em cursos de graduação e programas de pós-graduação (ainda que ambos estejam marcados por uma profissionalização precoce e invasiva que resulta em sua colonização pelo mundo da prática), mas também há quem reivindique que ele seja estendido a cursos preparatórios, além de espaços de mentoring, coaching ou mesmo cocriação, seja lá o que isso signifique.

A proliferação de cursos online, lives de YouTube e Instagram, threads no Twitter ou colunismo internético produz a combinação perfeita para a explicitação da crítica fácil: é tudo docência e/ou doutrina! Nesse ambiente, contudo, é intensa a possibilidade da crítica descambar e, esgarçando a voz institucional, transformá-la em mutilação institucional.

É, aliás, o que parece se produzir na polêmica do caso da churrascaria Fogo de Chão, cuja decisão de primeira instância foi comentada (e bastante criticada) por um juiz em artigo que se reivindica doutrinário e parte de seu trabalho docente. Com o declarado intuito de provocar uma catarse coletiva, ele diz não criticar pessoalmente a autora da sentença, cujo trabalho é tomado como exemplo de uma forma de pensar ainda comum na magistratura trabalhista. Ora, é justamente aqui que a crítica derrapa, pois, embora ela diga mirar e contestar um modelo de raciocínio abstrato pautado por uma principiologia constitucional, que deixaria os jurisdicionados nas mãos da subjetividade dos juízes, não é efetivamente esse arcabouço teórico que é contestado, mas sim a decisão de per si.

Ao tomar uma decisão isolada como ilustrativa de uma Justiça do Trabalho supostamente incapaz de perceber seu “novo e adequado” lugar no mundo (o que pouco ou nada tem de doutrinário), produz-se uma fissura institucional que não consegue sequer induzir a discussão originalmente pretendida. Nada disso resulta na catarse supostamente desejada, mas, tão somente, na elaboração de uma crítica desrespeitosa. No fundo, quem parecia estar falando não era algum juiz ou docente, mas o líder de uma associação de magistrados recentemente constituída e que deseja outro papel institucional para a Justiça do Trabalho. É algo que, por certo, também tem sua legitimidade, mas não se confunde com doutrina ou docência. Não é mais do que pura e simples política institucional.

Paro e releio o que escrevi. Parece não haver uma conclusão fácil. Ao cabo, sigo com meu dilema, ainda que agora minorado pela pandemia, pois não há mais viagens a fazer. Busco na memória e dou-me conta que nem lembro mais quando foi a última vez em que preenchi uma ficha de registro em algum hotel. Com o distanciamento social, não lembro sequer quando encontrei gente conhecida! Como um Janus bifronte e agora em trabalho remoto, sigo juiz-docente ou docente-juiz, com a preferência por um ou outro pertencimento sendo usada em função do propósito do usuário: crítica, elogio, ironia, despeito, desdém e tantos outros sentimentos que sou incapaz de repertoriar.

Normalmente, vejo o duplo pertencimento como um sinal de êxito profissional, mas não são poucas as críticas que sugerem a necessária ocorrência de prejuízo para uma das duas atividades. Prossigo, insisto mesmo, no duplo pertencimento, sem dirimir meu dilema, cuja resposta é talvez irrelevante diante do desafio maior (e essencial) que consiste em encontrar mecanismos para definitivamente profissionalizar a docência jurídica. Paro e reflito: dou-me conta que o texto e, em especial, sua conclusão são uma crítica explícita a mim mesmo, que, afinal, sou juiz e professor. Em contextos institucionais bem delineados, não há dúvida, é difícil exercer ambas as profissões. Paro e hesito. Recomponho-me: minha eventual e improvável excelência é pequena diante do ganho coletivo que a docência jurídica obterá com sua profissionalização. Paro e respiro. Expio o sofrimento pessoal e convenço-me que o ensino será melhor e deixará de ser moldado pelo mundo da prática. Paro e agradeço. Minha polifonia fez-me entender que sou contraditório, mas não priorizo trajetórias individuais diante da constituição de um território profissional. Faz tempo que precisamos de professores, apenas!

*Foto: Arquivo/Agência Brasil < VOLTAR