Esperança Garcia: nome do prédio do TRT-1 reforça luta racial, diz Márcia Leal

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A decisão de dar o nome Esperança Garcia para o prédio, que abriga as varas do Trabalho na Rua do Lavradio, no Centro do Rio, carrega um forte simbolismo: homenageia a primeira advogada negra do Brasil e reafirma o compromisso do TRT-1 (Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região) com a equidade de gênero e raça. Para a desembargadora Márcia Regina Leal Campos, a iniciativa fortalece o compromisso de inclusão do Tribunal e marca um passo importante na valorização da diversidade no Judiciário.

Em entrevista concedida no Mês Internacional da Mulher, a coordenadora do Subcomitê Regional de Equidade de Raça, Gênero e Diversidade analisou os impactos da medida. A magistrada destacou que a escolha de Esperança Garcia, primeira advogada negra do Brasil,  simboliza o reconhecimento da trajetória feminina na Justiça do Trabalho e chama atenção para a  necessidade de maior representatividade das mulheres nos espaços de poder. A mudança feita pelo subcomitê foi aprovada pelo Órgão Especial em agosto do último ano. Antes, o prédio levava o nome do Marquês de Lavradio, um colonizador português. 

Segundo a desembargadora, a decisão não se limita ao aspecto simbólico, mas se insere em um contexto mais amplo de transformação institucional. Entre as medidas recentes, Márcia Leal mencionou a aplicação da Resolução do CNJ 497/2023, que prevê a reserva de vagas para mulheres em situação de vulnerabilidade em contratos terceirizados do TRT-1. Na avaliação da desembargadora, a renomeação do prédio não apenas resgata a história de uma mulher que abriu caminhos, mas sinaliza mudanças efetivas que estão em curso. 

A seguir, entrevista completa com Márcia Leal: 

AMATRA1: O Dia Internacional da Mulher é um momento de reflexão sobre conquistas e desafios na luta por igualdade. Como a mudança do nome do edifício do TRT-1 para Esperança Garcia simboliza essa luta no âmbito do Judiciário?

Márcia Leal: A renomeação do prédio público enaltece o protagonismo feminino. Ao contrário do que supõe o senso comum e até mesmo uma parte da historiografia oficial, ao longo do tempo houve mulheres que, com sua atitude, mudaram os rumos da sociedade. 

Saber que Esperança Garcia, uma mulher negra escravizada, peticionou aos poderes então constituídos para denunciar as mazelas de sua condição, se sintoniza com a essência do Poder Judiciário. Afinal, a Jurisdição, sobretudo a trabalhista, tem por princípio básico a oitiva dos que suplicam por seus direitos. E, como se sabe, a vulnerabilidade atinge de maneira ainda mais acentuada as mulheres. 

Ao rememorarmos Esperança Garcia, reafirmamos o ideário de cidadania e igualdade que deve permear toda atuação do Poder Judiciário. Mas também somos lembrados de que a luta por melhores condições de vida no Brasil teve por precursora alguém do gênero feminino.

AMATRA1: O nome Esperança Garcia representa uma figura histórica de resistência e luta. Qual a importância de homenagear uma mulher negra especialmente na Justiça do Trabalho?

Márcia Leal: Esperança Garcia foi escravizada e, aos 19 anos, escreveu uma carta ao governador da então Capitania de São José do Piauí, para denunciar as violências que sofria. Essa carta foi considerada uma das primeiras petições jurídicas nacionais de que se tem conhecimento. Em novembro de 2022, a OAB a reconheceu como a primeira advogada negra do Brasil. 

Mulher negra, escravizada, demonstrou, nos idos de 1878, consciência de sua condição humana e de seus direitos, quando foi em busca de sua sobrevivência, de sua família e de todas as pessoas escravizadas que com ela sofriam. 

Dar seu nome ao prédio onde funciona um grande número de Varas do Trabalho do Rio de Janeiro não é só uma homenagem a essa mulher. É, sobretudo, dar significado a esse prédio, que representa uma espetança para  tantos cidadãos, em sua maioria, pobres, negros e em situação de vulnerabilidade, que buscam alguma justiça, uma reparação pelo trabalho realizado e não indenizado. 

Associar um prédio da Justiça do Trabalho, a justiça social brasileira, à pessoa de Esperança Garcia traz à tona a ideia de resistência e luta, símbolos de sua existência.

AMATRA1:  A senhora acredita que  a mudança pode impactar a percepção da sociedade sobre o papel da Justiça do Trabalho nas lutas identitárias?

Márcia Leal: O prédio foi inaugurado quando eu ainda era titular da Vara do Trabalho de Itaguaí. Vim trabalhar nesse prédio em 2010 e, desde então, incomodava-me identificar as Varas do Trabalho com um prédio, cujo nome era de um homem branco que facilitou a chegada de pessoas escravizadas no Brasil. Uma grande violência. 

Quando assumi a coordenação do Subcomitê de Equidade Racial, em julho de 2022, ainda muito insegura sobre as competências e possibilidades de minha função, já nutria o desejo de rebatizar esse prédio. E buscava um nome forte, à altura da importância da Justiça do Trabalho para a sociedade brasileira e que efetivamente representasse a luta e a resistência dos trabalhadores brasileiros. Então veio a sugestão de uma colega que integra o Subcomitê, Rosana Mattos, de usarmos o nome dessa grande mulher negra, Esperança Garcia. 

Nessa época, nosso Subcomitê já tinha crescido e se transformado em Subcomitê Regional de Equidade de Raça, Gênero e Diversidade e o nome Esperança Garcia pareceu-me perfeito para ressignificar o prédio e mostrar à sociedade brasileira que ali se encontram resistência, luta e muita esperança em uma sociedade mais justa e equânime, para homens e mulheres.

AMATRA1: A senhora acredita que o Judiciário tem avançado na valorização da diversidade e na promoção da equidade de gênero? Quais desafios ainda precisam ser superados?

Márcia Leal: Sem dúvida. O protocolo lançado em agosto de 2024 pelo TST é um grande avanço, demonstrando a permeabilidade do Direito a essas novas perspectivas, para além do paradigma clássico da neutralidade. É o Direito se percebendo também como autor de discriminações e homologador de injustiças, ao desconsiderar a existência de grupos diversos e plurais. Além disso, os diversos comitês criados nos últimos anos demonstram que os Tribunais, como instituições, percebem seu papel social de repensar sistemáticas e processos, para superar injustiças naturalizadas. 

Ainda precisamos garantir às mulheres, e às mulheres negras, oportunidade de ascensão a cargos de gestão. Apesar do grande número de mulheres que atuam no TRT1, poucas são aquelas que ocupam cargos de gestão, sobretudo na alta administração. E quando pensamos em mulheres negras, esse número fica ainda mais reduzido.

AMATRA1: Como essa alteração do nome  tem sido percebida internamente no Tribunal?

Márcia Leal: A princípio, a mudança do nome do prédio para Esperança Garcia foi bem recebida pelo público interno e externo, evidenciando o compromisso com a promoção da igualdade racial, política incentivada pelo Poder Judiciário. No entanto, para que o novo nome se consolide entre magistrados, servidores e a sociedade, é fundamental ampliar sua visibilidade e incentivar seu uso. 

A força de um nome se constrói diariamente, e, por isso, é essencial que a administração do TRT1 o reforce em comunicados, reportagens e demais registros institucionais. Dessa forma, Esperança Garcia será cada vez mais associada à Justiça Social, especialmente à Justiça do Trabalho.

AMATRA1: Existe alguma outra iniciativa em andamento para reforçar o compromisso do TRT-1 com a diversidade e a inclusão, especialmente em relação às mulheres no Direito?

Márcia Leal: O decreto 11.430/2023 é um bom exemplo de medida adotada pela Administração Pública.

Este Decreto se refere exclusivamente ao Poder Executivo. No TRT1, é possível perceber um movimento inicial para aplicação desse da Resolução CNJ 497/2023, que estabelece critérios para a inclusão, pelos Tribunais e Conselhos, de reserva de vagas nos contratos de prestação de serviços continuados e terceirizados para as pessoas em condição de vulnerabilidade econômico-social: 

I – mulheres vítimas de violência física, moral, patrimonial, psicológica ou sexual, em razão do gênero, no contexto doméstico e familiar; 

II – mulheres trans e travestis; 

III – mulheres migrantes e refugiadas; 

IV – mulheres em situação de rua; 

V – mulheres egressas do sistema prisional; 

VI – mulheres indígenas, campesinas e quilombolas. 

O TRT1 está em vias de aderir a acordo de cooperação para assegurar vagas a mulheres em condição de vulnerabilidade nas contratações por empresas terceirizadas, atendendo a essa Resolução. 

Além disso, o Subcomitê já requereu, e foi atendido, a instalação de banheiros neutros, que permitam atender às demandas de pessoas que não se identificam com os gêneros feminino ou masculino, o que vai lhes garantir segurança e conforto.

Mês Internacional da Mulher e a Mulher na Magistratura

Março é um convite à reflexão sobre os avanços e os desafios das mulheres na sociedade. O dia 8, em especial, simboliza as conquistas femininas, mas também reforça que ainda há um longo caminho para superar barreiras, especialmente em ambientes historicamente dominados por homens, como o judiciário.

Na magistratura, a presença feminina cresce a cada ano, mas as mulheres ainda enfrentam o desafio de conciliar a carreira com a vida familiar, além de lidarem com estigmas e desigualdades de gênero.

Mais do que uma data, o 8 de março é uma oportunidade de reconhecer e homenagear a trajetória de mulheres que dedicam sua atuação à Justiça e a tantas outras áreas, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e igualitária.

Foto de capa: Busto de Esperança Garcia esculpido pelo artista piauiense Braga Tepi/Academia Piauiense de Letras.

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