“Pra Inglês Ver”

 

* Fabrícia Gutierrez é juíza do Trabalho e diretora da Amatra1  e Edmilson de Oliveira Abreu é pesquisador 

Não existe um consenso sobre a origem da expressão “para inglês ver”. Para alguns, como Mário Sette – jornalista, contista e romancista pernambucano, autor de “Senhora de Engenho (1921)” e de “O vigia da Casa Grande(1924)” –,  o termo teria surgido como um deboche aos nativos pernambucanos, quando estes imitavam os trajes de linho usado pelos ingleses. Já para outros, como o filólogo João Ribeiro em seu “A língua Nacional”, com o qual comungo, a origem teria a ver com o Tratado Antitráfico de Escravos, assinado com o governo Inglês e promulgado em 1827, em troca do reconhecimento internacional da recente independência Brasileira de Portugal. Porém, como o resultado prático deste ordenamento foi exatamente o oposto, ou seja, o tráfico não só se manteve como se tornou ainda mais especializado e valorizado, cunhou-se a expressão. Em 2018, completamos 130 anos de abolição formal da escravatura, e essa breve digressão inicial pode não parecer, mas diz muito sobre o modo como, até hoje, enfrentamos a questão da discriminação racial, institucional e socialmente: só “para inglês ver”.

Os mais de 350 anos da instituição da escravidão deixaram marcas na sociedade brasileira, introjetamos a aceitação da materialização do indivíduo e categorização de subumano pelo critério de cor de tal modo, que pautamos de maneira não reflexiva toda nossa construção de valores morais e suas derivações práticas nessa ideia. Desde os conceitos dicotômicos mais básicos, como, de belo/feio; bom/ruim; sacro/satânico; até formulações mais elaboradas como a teoria do racialismo, ou a construção do arcabouço político/jurídico/cultural escravocrata. Ou seja, não bastou a hediondez do sequestro, da travessia continental insalubre, da carga de trabalho animalesca, do estupro recorrente e tantas outras barbáries. Ainda criminalizamos tudo que tivesse alguma ligação com a cultura negra africana original: música, dança, religião, vestuário, costumes e relações sociais. Provas dessa criminalização não nos falta ainda hoje. Quem nunca ouviu expressões do tipo: “A coisa tá preta!”, “Fede que nem preto!”, “Coisa de Macumbeiro!”; “Cabelo duro que nem Bombril!” etc. ?

O processo abolicionista não se deu de forma fraternal e pacífica, pelo contrário, não são poucos os relatos históricos de suicídio, aborto, infanticídio e principalmente fuga, usados como forma de resistência pelos cativos. O relato a seguir do Reverendo Robert Walsh (1772 – 1852) deixa isso claro: “Esse horror à escravidão chega a tal ponto que os negros, para escapar a ela, matam não só a si próprios como também os filhos. As mulheres negras têm fama de ser excelentes mães, e tive a oportunidade de ver sempre confirmada essa fama em todas as ocasiões; não obstante, essa mesma afeição que têm pelos filhos leva-as a cometer infanticídio. Muitas delas, principalmente as negras minas, repelem violentamente a ideia de ter filhos, empregando vários meios para matar a criança ainda no ventre, evitando assim – conforme declaram – a desgraça de por mais escravos no mundo…” 24 (Notícias do Brasil(1828-1829). Belo Horizonte-Itatiaia, São Paulo-EDUSP, 1985. Vol.2, p.162.).  Assim como também podemos observar na obra do historiador Manolo Florentino, “Em Costas Negras”, o paradigma da leniência romantizada da escravidão de caráter humanitário antirracista, que seriam a base de nossa “identidade nacional” de Gilberto Freyre, não se sustentava diante das altíssimas taxas de mortalidade e baixos índices de reprodução natural no nosso sistema escravista (Florentino 1997, pg. 52).

 

A resposta a essa reivindicação ocorreu em duas frentes, uma Estatal e outra por parte dos proprietários. O Estado com a produção de uma legislação – a partir da primeira metade do Séc. XIX – falha, gradual e progressiva para a concessão da alforria, podemos citar:

  • Lei Eusébio de Queiroz 1850 (Determinava o fim do tráfico negreiro, que apesar de reduzi-lo drasticamente, acabou por aperfeiçoá-lo e valorizá-lo);
  • Lei do Ventre Livre 1871 (Dava liberdade aos filhos das escravas, acalmando assim os abolicionistas do parlamento, ao mesmo tempo em que postergava a emancipação dos cativos ativos. E pior que isso, os senhores deveriam manter os recém-nascidos até a idade de 8 anos. Depois, o proprietário ou entregava a criança ao Estado e recebia uma quantia em dinheiro como indenização, ou o senhor ficaria com o “liberto” até os 21 anos, sendo que estes deveriam, até atingir esta idade, trabalhar para seu sustento, “pra inglês ver”!!)
  • Lei dos Sexagenários 1885 (nem vou tecer comentários sobre o quão draconiana foi esta lei, que vai além da idade mínima exigida, prefiro deixar o texto original para análise do leitor: “§ 10º São libertos os escravos de 60 anos de idade, completos antes e depois da data em que entrar em execução esta lei, ficando, porém, obrigados a titulo de indenização pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores pelo espaço de três anos”.); e finalmente,
  • Lei Áurea 1888 (Declarou extinta a escravidão no Brasil)

 

E os proprietários, com a utilização cada vez mais crescente e agressiva dos chamados “Capitães do mato” responsáveis pela recuperação dos escravos fugidos. Nesse cardápio de opções, entre a morte, o risco da fuga e a legislação, nem mesmo esta última era garantia de sucesso na busca pela liberdade, uma vez que não raro, mesmo se enquadrando à legislação, o escravo recém-livre era recolocado em cativeiro através de um conluio envolvendo força policial, senhores de terra e traficantes.

Pós Lei Áurea, Florestan Fernandes (1920-1995) relata, no clássico “A integração do negro na sociedade de classes”:

“A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. (…) Essas facetas da situação (…) imprimiram à Abolição o caráter de uma espoliação extrema e cruel”.

Ou seja, a população negra, ainda que liberta, fora lançada a própria sorte,  desempregada, desabrigada, marginalizada e sem uma orientação destinada a integrá-la às novas regras de uma sociedade baseada no trabalho assalariado, teve que lidar com outro adversário de peso: a chegada de mão de obra europeia, custeada, pasmem!!! Pelo Estado Brasileiro!!! Só uma sociedade doente, e enraizadamente racista aceitaria e pior, justificaria tal perversidade. As explicações e justificativas que leio hoje em dia, já sabidas e conhecidas as consequências destas medidas, de que isso trouxe qualificação do trabalho pela expertise dos imigrantes europeus é ainda mais grotesca e cruel. O paralelo com o conceito de banalidade do mal da filósofa Judaico-alemã Hannah Arendt (1906-1975) em “Eichman em Jerusalém” é bastante claro.

Com toda essa carga histórica, posta aqui de forma bastante resumida, 130 anos depois, temos muito pouco que comemorar e muito que fazer. Hoje a luta dos negros não é mais pela liberdade stricto sensu, mas por liberdades mais difusas como a de ter igualdade no direito ao acesso às ferramentas necessárias para seu desenvolvimento como cidadão e cidadã brasileiros, direito de andar sem ser suspeito pelo simples fato de ser negro, direito a ter os mesmos salários quando suas atribuições são as mesmas de um cidadão branco, enfim, uma luta de várias frentes, mas com os mesmos adversários. Aqueles que ao verem uma política de afirmação, por menor que seja, busque dirimir as consequências deixadas pela escravatura, vociferam ataques rasos, que evocam as “verdades absolutas” da “meritocracia”, do “racismo reverso” (oi?!) e coisas do tipo, pessoas que foram acostumadas a estar em posição de privilégio em relação à, como define Jessé de Souza em seu brilhante “A Elite do Atraso”, ralé de novos escravos.

Como podemos aceitar como natural o genocídio anual de mais de 60 mil jovens negros e pobres? Como podemos conviver com um número de 2,0% de negros magistrados entrantes entre 2012 e 2013, contra 79,4% de brancos (censo do Poder Judiciário 2013, pg. 40), em um país com a maior população negra fora da África, só ficando atrás da Nigéria? Como desconsideramos a disparidade entre a remuneração percebida por trabalhadores negro(a)s frente aos branco(a)s e pardo(a)s? Por quantos médico(a)s negro(a)s você já foi atendido caro leitor? Ou quantos professores negros já teve? Sua empregada doméstica, babá, motorista, são negros?

Como esse texto não tem o interesse de vitimizar, mas sim de propor uma reflexão não só “para inglês ver”, não poderia encerrá-lo sem destacar a principal característica da população negra brasileira, a RESISTÊNCIA! O negro é, antes de tudo, um sobrevivente. Um salve a Francisco José do Nascimento, Dandara, Luiza Mahin, Carolina Maria de Jesus, João Cândido, André Rebouças, Cruz e Souza, Mãe Menininha do Gantois, Aqualtune, Tereza de Benguela, Zumbi!!!!!

 

 

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

 

FLORENTINO, Manolo . Em Costas Negras: Uma história do tráfico de escravos entre África e o Rio de Janeiro. 1ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

 

DE SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: da escravidão à Lava Jato. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2017.

 

FREYRE, Gilberto . Casa Grande & Senzala: Formação da Família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 50ª. ed. Sao Paulo: Global, 2005.

 

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. 1ª. ed. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1999.

 

FERNANDES, Florestan. A Integração do negro na Sociedade de Classes. 1ª. ed. Sao Paulo: Biblioteca Azul, 2007. v. 2.

 

CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Censo do Poder Judiciário. VIDE- Vetores Iniciais e Dados Estatísticos, Brasília, p. 39-40, jan. 2014. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/dpj/CensoJudiciario.final.pdf>. Acesso em: 10 maio 2018.

 

Robert Walsh. Notícias do Brasil(1828-1829). Belo Horizonte-Itatiaia, São Paulo-EDUSP, 1985. Vol.2, p.162.