08 de março de 2022 . 11:36

'Heroína do Sertão': a luta de Maria Quitéria contra os padrões impostos

Neste Dia Internacional da Mulher, a juíza do Trabalho Najla Abbude narra a história de Maria Quitéria, primeira mulher a fazer parte do Exército Brasileiro. Na luta contra o domínio colonial português, na Bahia, em 1823, a revolucionária pegou em armas e se destacou pela bravura. Mas a autora destaca que Maria Quitéria inspira outras mulheres "por ter desafiado os estereótipos e normas de conduta que lhe foram impostas". O texto "Heroína do Sertão" faz parte da segunda edição da coluna "Mulheres, por elas mesmas", ação da AMATRA1 que homenageia as mulheres no mês de março.

Heroína do Sertão

por Najla Abbude

Quando recebi o convite para escrever esse texto, passaram pela minha cabeça algumas mulheres de destaque, desde minha mãe, exemplo primeiro que tive em minha vida, até personalidades nacionais e internacionais.

Todavia, optei por partilhar nessas linhas um pouco da História da minha terra, a Bahia, e de uma soldada baiana que um número insuficiente de pessoas conhece.

Nem todos sabem, mas a independência da Bahia do jugo português não ocorreu em 07 de setembro de 1822, quando do famoso grito de Dom Pedro I às margens do Rio Ipiranga. A independência da Bahia foi conquistada com suor e sangue de sua gente apenas em 02 de julho de 1823 e nessa história se destacam três mulheres. 

Joana Angélica, religiosa que morreu defendendo as irmãs do convento da Lapa, dando-lhes tempo de fugir dos soldados da tropa portuguesa. Maria Felipa de Oliveira, mulher preta e trabalhadora braçal da ilha de Itaparica que, segundo a tradição oral, liderou um grupo de 200 pessoas, incendiando embarcações portuguesas que atracaram na ilha. E Maria Quitéria, personalidade feminina por mim escolhida para compartilhar com vocês. 

Maria Quitéria era descendente de índios e portugueses, órfã de mãe aos 9 anos, era filha de um fazendeiro e natural da região hoje conhecida como Feira de Santana. Feira de Santana, aliás, além de atualmente ser a segunda maior cidade do Estado da Bahia, é também conhecida como Princesa do Sertão. 

Essa sertaneja era conhecida por sua beleza, mas também por seu espírito livre. Boa caçadora, sabia manejar bem armas de fogo, assim como cavalgar. 

Quando D. Pedro I optou por ficar no Brasil e, em resposta à Revolução do Porto, proclamou a independência do nosso país, tropas locais ainda fiéis aos portugueses se insurgiram na Bahia e em outras províncias.

Sem conseguir que o pai permitisse que se alistasse para lutar pela independência, Maria Quitéria disfarçou-se de homem. Com a ajuda da irmã, usou os documentos do cunhado e alistou-se para defender a pátria dos colonizadores, no Regimento de Artilharia, ficando conhecida como “Soldado Medeiros”. 

Após algumas semanas, foi descoberta pelo pai e denunciada ao superior. Todavia, como já havia provado seu valor, Maria Quitéria foi aceita e transferida para a tropa dos Voluntários do Príncipe D. Pedro e se destacou em combate por sua bravura, tendo recebido a honra de 1º cadete pelo seu papel no combate da Pituba, bairro da capital baiana. 

Ao ser descoberta e aceita, apesar de seu gênero, Maria Quitéria acrescentou a seu uniforme militar um saiote escocês que havia visto em uma pintura. Após a entrada do Exército Libertador em Salvador em 02 de julho de 1823, Maria Quitéria teve seus feitos reconhecidos pelo imperador D. Pedro I, tendo sido por ele cumprimentada e condecorada com a Ordem do Cruzeiro. Morreu em 21 de agosto de 1853, aos 61 anos, quase cega e na pobreza, sem conseguir receber parte da herança de seu pai.

Trago aqui a história dessa heroína nacional não para diminuir as nossas lutas diárias, sei bem que não lutamos com armas e que nossa peleja não é contra os portugueses, mas somos heroínas de nossa própria história.

Maria Quitéria inspira não por ter pego em armas e se destacado na luta contra o domínio colonial, mas por  ter desafiado os estereótipos e normas de conduta que lhe foram impostas. Ela não apenas disfarçou-se de homem para lutar ao lado dos compatriotas por aquilo que acreditava, Maria Quitéria abriu mão do papel de mulher de família imposto pela sociedade da época. Preferiu aprender a caçar a cozinhar, cavalgar a cerzir, conquistar a servir. Desafiou a segunda madrasta por toda a vida e por isso não conseguiu acesso à fortuna do pai quando este se foi. Deu voz a seu lado indígena, preferia ficar ao ar livre, dançar lundu com os escravos da senzala do pai a aceitar o que era esperado dela.

O papel desta Maria é grandioso não pelos feitos bélicos, ou apenas por ser reconhecida como a primeira mulher a fazer parte do Exército Brasileiro, mas porque se casou com o homem que escolheu, duas vezes. A primeira durante a guerra, casamento este cujo fim é controverso, se enviuvou ou se apenas ‘se separou’ e a segunda vez com aquele com o qual viria a ter sua única filha, um lavrador pobre e antigo namorado.

Maria Quitéria rompeu com os padrões impostos e é tida como um dos símbolos do movimento feminista brasileiro, essa brasileira merece ser mais conhecida pelos seus compatriotas. Trazer à luz essa mulher é reparar um pouco a injustiça histórica cometida com nossas personalidades femininas e acho que a minha escolha por sua história está mais do que fundamentada nas linhas acima.  < VOLTAR