10 de março de 2023 . 15:46

Seminário debate relatos e legislação sobre escravidão contemporânea

Relatos sobre a escravidão contemporânea e a evolução da legislação brasileira foram debatidos nesta quinta-feira (9), no primeiro dia do “Seminário Trabalho Escravo – 20 anos da alteração do art. 149 do Código Penal e Repercussões Trabalhistas”, promovido pela AMATRA1, pelo MPT-RJ e pela UFRJ. O presidente da AMATRA1, Ronaldo Callado; o procurador-chefe da PRT1, João Batista Berthier; e o coordenador do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC/NEPP-UFRJ), professor Ricardo Rezende, abriram o evento.

Ronaldo Callado lembrou as recentes denúncias de trabalho análogo à escravidão, que têm sido destaque constante na mídia. “Trabalhadores vêm sendo resgatados nos diversos rincões do país, inclusive nas regiões urbanas e, ainda, sob a capa simulada de trabalho doméstico, algumas vezes”, disse ele.

O presidente da AMATRA1 explicou que “o seminário pretende abordar a questão sob diversos vieses, tratando até mesmo de situações específicas e pouco debatidas tanto pela sociedade quanto pelo Direito, como a exploração de pessoas transexuais”.

João Batista Berthier afirmou que o ataque de 8 de janeiro às sedes dos três Poderes “indica um tipo de violência que a nossa sociedade tem estruturalmente”. Segundo ele, devemos recorrer a Maquiavel, “que tinha razão porque percebeu que, já na Era Moderna, as sociedades que viriam precisariam de instituições fortes, porque habilitadas a enfrentar os desafios, os golpes, os negacionismos”.

Para Berthier, “o que o Ministério Público quer é ser forte porque pronto para enfrentar os desafios que tem que enfrentar para o Brasil ser melhor”. Sobre o trabalho escravo, afirmou que não se combate com romantismo, nem com idealismos. “O Ministério Público sabe onde está o trabalho escravo. É na franja do processo produtivo. E o Estado tem muita dificuldade em chegar nas franjas, mas é muito importante que o Estado brasileiro chegue às franjas. É um trabalho longo, mas imprescindível”, afirmou.

Ricardo Rezende disse que o grupo de trabalho que ele coordena está fazendo 20 anos e realiza uma reunião científica anual. Para ele, trata-se de “uma tentativa de a universidade se debruçar sobre a escravidão contemporânea e ver como atuam os operadores do Direito”.

O professor acredita que “a mudança do artigo 149 do Código Penal foi reveladora porque colocou o Brasil com a legislação mais avançada, mas isso não é suficiente se os procuradores e juízes não perceberem”. Ele também defendeu que municípios e estados precisam se envolver com o problema, bem como os parlamentos municipais e estaduais.

Entregadores por aplicativos

A 2ª vice-presidente da AMATRA1 e juíza do Trabalho Mônica do Rêgo Barros Cardoso foi a mediadora dos debates. A primeira palestra foi proferida pela professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Marcela Soares, sobre “Entrega por Aplicativos e Trabalho Análogo ao de Escravo em Niterói”.

Ela apresentou alguns resultados da sua pesquisa sobre os entregadores por aplicativos. Foram entrevistados motoboys e ciclistas em Niterói e ciclistas no Centro do Rio. Segundo a professora, houve um aumento de 300% nos cadastros de novos trabalhadores na empresa Rappi na pandemia.

Marcela revelou também que há 1,7 milhão de brasileiros que trabalham com essas plataformas, incluindo os motoristas da Uber, mas apenas 23% contribuem para a Previdência. Sobre os entregadores, disse que a maioria dos que usam bicicleta têm problemas na coluna.

Quanto ao gênero, 96% são homens e as poucas mulheres que trabalham como entregadoras reclamam de assédio sexual e violência no trânsito. Nesse setor, 80% dos trabalhadores são negros e 20% brancos. E a jornada de trabalho é exaustiva, com uma média semanal de 55 horas, mas podendo chegar a 64,5 horas.

Ela lembrou que, em pesquisa realizada em âmbito mundial, “as pessoas que sofrem com doenças cardíacas e morrem é porque tinham jornada de trabalho de pelo menos 55 horas semanais”. Na pesquisa que ela realizou, os principais problemas de saúde apontados foram dores na coluna, ansiedade, insônia e dores nas pernas.

Quanto à remuneração média em Niterói, é de um salário mínimo, sendo que eles têm um custo referente a 40% desse valor. “Essas pessoas estão esgotando prematuramente sua saúde física e mental e o que recebem não garante o básico para sobreviver”, disse Marcela.

Ao final, a professora alertou que “a plataformização do trabalho tem incorporado cada vez mais profissionais e a inteligência artificial tem servido como véu para ocultar jornadas exaustivas, situações degradantes e desproteção social”.

Legislação

Em sua palestra, a diretora cultural da AMATRA1 e juíza do Trabalho, Daniela Muller, falou sobre “Jurisprudência Acerca do Trabalho Análogo ao de Escravo no Estado do Rio de Janeiro”. Ela fez um relato sobre a evolução da legislação, do período colonial à atualidade.

Segundo Daniela Muller, só em 2003, com a nova redação do artigo 149 do Código Penal Brasileiro, é que a legislação para o combate ao trabalho escravo torna-se mais específica. Enquanto a redação original, do CPB de 1940, falava apenas em “reduzir alguém à condição análoga a de escravo: pena – reclusão de dois a oito anos”, a nova redação incorporou outras modalidades, tais como submeter alguém a trabalhos forçados ou jornada exaustiva, a condições degradantes de trabalho, ou restringir a locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com o empregador. As penas continuaram as mesmas.

Mesmo assim, disse a juíza, “após 20 anos, a impunidade não diminuiu”, apesar do voto prevalente da ministra Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal, que fez uma interpretação ampliada para o trabalho escravo. Daniela destacou o II Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, explicou que na Justiça do Trabalho o tema é tratado em Ações Civis Públicas, Individuais e Anulatórias, mas lamentou que não haja metas do CNJ na área trabalhista, nem programa oficial de monitoramento dessas ações, nem banco de dados oficial.

A diretora da AMATRA1 também citou os resultados da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da UFMG e do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública, que mapearam as sentenças penais e trabalhistas relativas ao trabalho análogo à escravidão na Justiça Federal e na Justiça do Trabalho de 2008 a 2019.

No Rio de Janeiro, disse que não há nenhuma pesquisa sobre a jurisprudência no estado, mas apresentou os valores que são deferidos em decisões do TRT-1, que vão de R$ 100 mil a R$ 500 mil.

Trabalho escravo doméstico

A procuradora do Trabalho e vice-coordenadora regional da Coordenadoria de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete) do MPT-RJ, Juliane Mombelli, abordou em sua palestra o tema “Trabalho Escravo Doméstico no Rio de Janeiro”.

Ela apresentou a prática do MPT no enfrentamento ao trabalho escravo doméstico, iniciando com uma explanação sobre o primeiro resgate feito no Brasil, em julho de 2017, em Rubim (MG). Também contou como foi feito o resgate de Madalena Gordiano, em Patos de Minas (MG), que ficou 38 anos em situação de trabalho escravo doméstico.

No Rio de Janeiro, houve aumento das denúncias na pandemia. Em 2021, foram 82, e em 2022, 104. Dessas, 10 resultaram em resgates feitos pelo MPT-RJ. Os principais delitos foram degradância e retenção de documentos. Desses 10 casos, um foi em Teresópois, um em Duque de Caxias e oito na capital.

Juliane Mombelli disse ainda que o tempo de trabalho escravo das resgatadas era de 13 a 73 anos, este último o caso da idosa de 84 anos que passou praticamente toda a vida servindo diferentes gerações de uma mesma família. Ela lembrou que a maioria dessas trabalhadoras são escravizadas com menos de 16 anos. “O trabalho infantil leva ao trabalho escravo”, afirmou.

A procuradora finalizou sua apresentação mostrando a ação integrada desenvolvida pelo MPT-RJ com a Cáritas PARTE para romper com o ciclo do trabalho escravo contemporâneo. O projeto abrange atendimento psicossocial, encaminhamento a famílias e abrigos, articulação da rede de atendimento e capacitação dessas trabalhadoras para reinserção no mercado de trabalho.

Foto/Divulgação MPT-RJ: Juliane Mombelli, Mônica do Rêgo Barros Cardoso, Daniela Muller e Marcela Soares

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